Será mesmo que o nosso mundo não está acabando?
Fim do mundo - Carlos
Drummond de Andrade
Não se sabe ainda se o
mundo acabou realmente no sábado, como fora anunciado. Pode ser que sim, e não
seria a primeira vez que isso acontece. A falta de sinais estrondosos e
visíveis não é prova bastante da continuação. Muitas vezes o mundo acaba em
silêncio, ou fazendo um barulho leve de folha. Tempos depois é que se percebe,
mas já então vivemos em outro mundo com sua estrutura e seus regulamentos
próprios, e ninguém leva lenço aos olhos pelo falecido.
O
mundo primitivo dos répteis, o mundo neolítico, o egípcio, o persa, o grego, o
romano, o maia... todos esses acabaram, e muitos outros ainda. A história é
cemitério de mundos, notando-se que uns tantos acabaram de morte tão acabada
que nem sequer figuram lá com uma tabuleta; não se sabe que fim levaram as
cinzas.
Pessoas que aí estão vivas assistiram à morte do
mundo em 1.º de agosto de 1914, mas estavam lendo jornal e não compreenderam no
momento. Era apenas mais uma guerra na Europa, mas acabou com a belle époque, a
douceur de vivre, a respeitabilidade vitoriana, o franco, a supremacia da
libra, os suspensórios, o rapé, os conceitos econômicos, políticos e éticos do
século XIX – mundo que parecia eterno. Pedaços dele andam por aí, vagando, como
o colonialismo, a pressão de grupos financeiros, a servidão civil da mulher,
mas pertencem a um contexto liquidado, rabo de lagartixa vibrando depois que o
corpo foi abatido.
É possível que a previsão dos astrólogos indianos não
tivesse base, e que o mundo atual dure muitos anos. Acredito mesmo que é cedo
para ele morrer, se apenas está nascendo, e nem sabe ao certo como é ou
será.
Aos sete anos de idade imaginei que ia presenciar a morte do mundo, ou antes, que morreria com ele. Um cometa mal-humorado visitava o espaço. Em certo dia de 1910, sua cauda tocaria a Terra; não haveria mais aulas de aritmética, nem missa de domingo, nem obediência aos mais velhos. Essas perspectivas eram boas. Mas também não haveria mais geléia, Tico-Tico, a árvore de moedas que um padrinho surrealista preparava para o afilhado que ia visitá-lo. Idéias que aborreciam. Havia ainda a angústia da morte, o tranco final, com a cidade inteira (e a cidade, para o menino, era o mundo) se despedaçando – mas isso, afinal, seria um espetáculo. Preparei-me para morrer, com terror e curiosidade.
Aos sete anos de idade imaginei que ia presenciar a morte do mundo, ou antes, que morreria com ele. Um cometa mal-humorado visitava o espaço. Em certo dia de 1910, sua cauda tocaria a Terra; não haveria mais aulas de aritmética, nem missa de domingo, nem obediência aos mais velhos. Essas perspectivas eram boas. Mas também não haveria mais geléia, Tico-Tico, a árvore de moedas que um padrinho surrealista preparava para o afilhado que ia visitá-lo. Idéias que aborreciam. Havia ainda a angústia da morte, o tranco final, com a cidade inteira (e a cidade, para o menino, era o mundo) se despedaçando – mas isso, afinal, seria um espetáculo. Preparei-me para morrer, com terror e curiosidade.
O que
aconteceu à noite foi maravilhoso. O cometa de Halley apareceu mais nítido,
mais denso de luz e airosamente deslizou sobre nossas cabeças sem dar confiança
de exterminar-nos. No ar frio, o véu dourado baixou ao vale, tornando irreal o
contorno dos sobrados, da igreja, das montanhas. Saíamos para a rua banhados de
ouro, magníficos e esquecidos da morte, que não houve. Nunca mais houve cometa
igual, assim terrível, desdenhoso e belo. O rabo dele media... Como posso referir
em escala métrica as proporções de uma escultura de luz, esguia e estelar, que
fosforeja sobre a infância inteira? No dia seguinte, todos se cumprimentavam
satisfeitos, a passagem do cometa fizera a vida mais bonita. Havíamos
armazenado uma lembrança para gerações vindouras que não teriam a felicidade de
conhecer o Halley, pois ele se dá ao luxo de aparecer só uma vez a cada 76
anos.
Nem
todas as concepções de fim material do mundo terão a magnificência desta que
liga a desintegração da Terra ao choque com a cabeleira luminosa de um astro.
Concepção antiquada, concordo. Admitia a liquidação do nosso planeta como uma
tragédia cósmica que o homem não tinha poder de evitar. Hoje, o excitante é
imaginar a possibilidade dessa destruição por obra e graça do homem. A Terra e
os cometas devem ter medo de nós.