Palavras errantes - Ivan Ângelo
Saudemos o dia da língua,
que era chamada na escola antiga de Língua Pátria, e que Caetano Veloso em dia
inspirado chamou de “latim em pó”. Ah, língua de curiosidades e preciosidades,
que os dicionários ainda não dão conta de abraçar! Quem trabalha com ela fica
sensível a certos usos; mais, talvez, do que quem vai simples e
inescapavelmente usando. Não me refiro a dificuldades, aquelas que provocam
excitação vernácula nos gramáticos. Falo de curiosidades.
Por exemplo, o diminutivo
que aumenta. O significado de certos adjetivos aumenta quando se usa o
diminutivo. O diminutivo dá-lhes um sentido de cabal, de muito mais, de
completamente.
Morta, por exemplo. Quer
enfatizar, acentuar o sentido, tornar inquestionavelmente morta, sem dúvida
nenhuma morta? Acrescente o diminutivo: “Morta, mortinha”. Tem gente que ainda
põe sobrenome: “Mortinha da Silva”. Uma fruta é muito mais madura se está
madurinha. A indicação de uma casa na esquina é bem mais precisa quando se diz “na
esquininha”, não 100 metros para lá ou para cá. Muito duro? “Durinho!” “Surdo,
ele? Surdinho! Surdinho da Silva!” “Fresca? Fresquinha!” Mais do que bêbado:
“Bebadozinho, bebinho!”.
O curioso é que o mesmo
diminutivo às vezes ameniza em vez de aumentar a força de um adjetivo cruel,
buscando tom carinhoso: velhinho, feiosinho, pobrezinha, barrigudinho,
chatinha. “Não é chaaaaaaata, é chatinha.” A intrigante vira intrigantezinha, o
feio vira feinho, a burra vira burrinha.
O mesmo diminutivo, quando
aplicado em adjetivos elogiosos, torna seu sentido quase o contrário, ou faz
uma caricatura. É o caso de moderno: “Fulana é muito moderninha pro meu gosto”.
“É um pintor, assim, moderninho, sabe?” “É, ela é bonitinha.”
Há coisas que existem e não
têm um nome para designá-las, ou tal palavra não encontrou abrigo em
dicionário: a condição de avô é uma delas, e essa inexistência foi objeto de
especulações do escritor Humberto Werneck. Condição de mãe é maternidade, de
pai é paternidade, de irmãos é fraternidade — e de avô, avó?
A parte de cima e a de
baixo do biquíni deveriam ter seu próprio nome, e a falta dele causou
estranheza ao escritor angolano José Eduardo Agualusa, num livro que bateia palavras,
“Milagrário Pessoal”.
Não encontro “entrão” nos
dicionários. Há publicações que não aceitam palavras desmerecidas pelo
dicionário. Como designar o sujeito que todos chamamos de entrão? Ousado? É
pouca coisa quando se fala de um entrão.
Nas calçadas da rua, sabem
aquela areazinha protegida por murinho ou gradeado, onde se planta uma única
árvore? É ajardinado? Jardim? Não é. É latada? Cova? Canteiro? Não. Nem o
dicionário de jardinagem ajuda; aquilo, tão comum, parece não ter nome.
Outro dia quis descrever um
pica-pau caminhando no galho vertical de uma árvore, teso, leve, em pé. Quis
mais: quis usar o diminutivo que aumenta o sentido, significando bem em pé,
estranhamente em pé, como se um prego se equilibrasse na parede sem ser
fincado. “Em pezinho” ficou esquisito, parecia que ele estava em pés pequenos.
Ora. Para enfatizar “cabelos em pé”, se escrevermos “empezinhos” ou
“em-pezinhos”, a palavra já vai aparecer sublinhada de vermelho na tela do
computador, indicando erro; se escrevermos “cabelos em pezinhos” vai parecer
outra coisa, algo como pelos em pés pequenos.
Quer ver uma coisa?
Mal-amado não tinha verbete, só mal-amada. Como se só mulher fosse mal de
amores, homem não. Depois que alguns escritores reclamaram, apareceu o
mal-amado.
Palavras errantes estão na
boca do povo há muitos séculos. Clássicos de 1.500 as usavam. A grafia despois
era uma forma comum de “depois”; desque era usada como “desde que”, “assim
que”; afogada já era usada lá como refogada; frol aparece muito no lugar de
flor, e talvez venha daí a nossa pronúncia caipira de “frô”; antão, no lugar de
então; crara, por clara.
Citando de novo Caetano:
gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões.
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